Poderia falar do luxo. Da produção impecável, parceira e vibrante. Poderia falar dos encontros, dos brilhos nos olhos em praças públicas, interior de escolas de Goiás com suas crianças faceiras como em todo lugar.
Eu poderia falar do convite. De pessoas doces que assistiram o meu DVD caseiro junto a outras centenas de cenas gaúchas e que apostaram no meu trabalho, sem nem me conhecer ao certo. Falar dos vôos, idas e vindas, ou das comidas deliciosas. Ou do motorista da van com suas histórias (por vezes tristes, mas nem por isso com menos sorrisos). Ou do brinde pela excelência do Festival (e o foi!) inundando de água salgada os olhos do principal responsável pelo evento, que, contente, entregava rosas típicas das regiões onde passamos.
Poderia falar de tudo isso com delicadeza nos traços, retrato do ocorrido. Mas não, não hei de falar disto mais do que disse nas linhas que trouxeram a estas. Não posso temperado com não quero. Vou falar daqui de onde estou: um quarto de hotel em Brasília que, sozinho, mede mais que o apartamento alugado que divido com meu companheiro. Que possui duas TV’s LCD’s com canais dos mais distintos; quarto/suíte possuidor de uma sala enorme, luzes por todo o lado, requinte em cada centímetro. Com geladeira e máquina de café em cada quarto. Hotel este que vive lotado de político (quando não estão nos “quartos” ainda melhores) e pessoas ditas importantes que vem até aqui. Onde estou agora, eu só, em plena capital federal.
Não que não me encante com todo este cenário. Entrei e nem acreditava no que via: minha nossa, tudo isso só para mim? Não que não ache que todos devem ser bem tratados, que todos merecem estar aqui (as cortinas brancas agitam-se com a brisa leve que vacila entrar). Acho. Mas cá dentro de mim grita minha memória, e pergunto, em máxima sinceridade: pra quê tudo isso?
Nem vou citar os salários dos políticos – batida visão. Acabo de ouvir do jornal que o servidorismo público daqui é o que recebe melhores salários, cerca de 100% mais do que os de SP, por exemplo. Por que aqui? – deveríamos nos perguntar. Não que eu não ache que se deva receber salário justo. Acho. Mas… a que preço, vindo da onde – ou, antes, pago por quem e deixado de ser dado a quem?
Papo brega, talvez – beira a pieguice. Mas minha memória é meu testemunho, e ela não cala, a sussurrar em meus ouvidos sujos.
Fazem dois anos, quase três, que cheguei de uma viagem pelo Brasil, por povoados. Neste ato salvei a mim mesma (apesar de algumas mentes confusas insistirem em achar ato heróico o meu..). Minha Nossa Senhora da Memória Vibrante, não deixe de olhar por mim. Porque daqui deste assoalho bonito de onde estou lembro do barro, e sou mais formada de barro que de glória. Lutar por aquele faz mais sentido para mim que por este.
Levou dois anos para eu falar da experiência do Mãe, tô indo! sem chorar. Agora que consigo hei de falar dela mais e mais e mais e mais. Talvez canse alguns ouvidos, é o preço da fala. No entanto eu preciso reagir artisticamente a esta desigualdade que grita.
E assim como estas populações não são lembradas aqui, eu tampouco sou lembrada lá, no RS. Como você está estampada na divulgação do Festival como representante da cena gaúcha se nunca lhe vi? – perguntou o artista sulista para mim, agora a pouco, enquanto apontava um cartaz com meu rosto. Dei um breve sorriso. No dia que eu quiser ser assoalho requintado ou estar nele sem dar voz ao barro, é porque perdeu-se o que de mais valioso habita em mim. Pensei cá dentro: não é para você que direciono minha arte, não pode ser. E por isso estou tranqüila com o não-me-ver.
Está na hora de falar mais, isto concluo, e cá estou. Dar voz às belezas interioranas sem casas requintadas, TV’s LCD’s, máquinas de café. É hora, fez-se hora, de dar voz e valor a este “Brasil Pequeno” que vi e que não é visto nem dito nos canais deste hotel e nas salas fechadas deste distrito. É hora, fez-se hora. E deixo um vídeo do retorno de uma outra viagem que me atiçou esta mesma vontade, este olhar que aflora, esta memória que quer desabrochar.
É
hora.
Fez-se,
ora!