MANIFESTO NECITRA

Faz-se saber, via este manifesto redigido no décimo primeiro aniversário do NECITRA, ao que este Núcleo se propõe e como se estabeleceu em seus desdobramentos neste período. Parece pertinente manifestar, de início, seu propósito a partir do nome. Logo, um Núcleo não é uma Companhia. Esta se diferencia, em nossa compreensão, por uma estrutura hierárquica e voltada para a finalização de obras/produtos, tal como outros empreendimentos de produção, ao modo de uma companhia empresarial. Um Núcleo também não é um Grupo, em sentido estrito, uma vez que este último, ainda que possa se organizar de maneira mais horizontal, compartilha com a companhia o embasamento em certa identidade, manifestada sobre uma linguagem artística: assim se apresentam grupos de teatro físico, grupos de dança do ventre, grupos de circo, etc.

Núcleo é uma denominação menos utilizada pelos agrupamentos artísticos, e esse é um dos motivos pelo qual escolhemos esta nomeação. Um núcleo é, sobretudo, um coletivo de indivíduos para certos fins, em nosso caso, para a experimentação tendo como pressupostos a heterogeneidade do indivíduos, métodos e técnicas em constante abertura à processos transversais. Logo, para fins de afirmação de nossa identidade, é preciso postular que ela, a identidade, é aqui provisória, uma vez que se constitui como uma fase de um núcleo que se defasa individuando-se no tempo. Ou seja, o NECITRA em seus primeiros anos (2009-2010) funcionou como um empreendimento idealizado por um indivíduo no entorno de um projeto contemplado em edital pela Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, e que possibilitou a criação deste espaço sobre o qual um coletivo de artistas se integrou.

Assim, nos anos seguintes, de 2010 à 2014, importou a afirmação de uma organização de grupo, engajando-se em projetos e espetáculos coletivos criados a partir dos anseios de um fazer comum, mas também como modo de divulgação das produtos e captação de recursos para os indivíduos e os processos grupais. Todavia, os fins projetados para o NECITRA, desde 2009, são os de funcionar como um espaço heterogêneo e não-hierárquico de pesquisa e experimentação, onde artistas-pesquisadores-professores extraem forças — como capital técnico-poético, logo cultural e artístico — em  condições e possibilidades para desenvolver suas experimentações e, por consequência, suas obras/performances/textos/vídeos/etc. Por consequência, o período mais recente, de 2015 até os dias atuais, atualizou o NECITRA à meio caminho entre um coletivo de artes, onde cada artista produz suas obras, compartilhando concepções éticas, estéticas e políticas comuns, e  um núcleo de pesquisa, voltado para a manutenção dos estudos com produções ora individuais, ora compartilhadas — tal como os grupos de pesquisa acadêmicos.

Com efeito, o NECITRA se estabelece sobre três princípios fundamentais: o da experimentação, o da comunidade e o da transversalidade. Isto é, que o foco do processo criativo não esteja no produto final, resistindo assim à convocação de um modelo dominante de produção, que demanda por novidades à todo o preço e consumos à todo o custo — e ao tempo e a nossa vitalidade que se esvai num trabalhar sem fim. Este é, portanto, o princípio da experimentação: que se tenha condições de espaço-tempo para estudar, pesquisar, especular, compor, provar, desmontar, encontrar, errar, refazer; ou seja, de tentar outra vez, retornando-se aos começos que já não são mais os mesmos, dado que sob outra perspectiva deste artista em obras e desdobras. Parte-se do pressuposto de que o ato de criar, em variações contínuas, correlaciona arte e formação, no sentido de educação.

Considera-se o ato de criar como uma condição humana, em criações de objetos — ferramentas e máquinas — e modos — procedimentos e métodos — de fazer que, não somente perpetuam nossa existência, mas possibilitam fruir do que se realiza. Com efeito, pelo exercício contínuo de criar, no qual se permuta entre as posições de artista e de espectador, torna-se crítico do que se produz, partindo de uma vontade de criar como expressão de si e de um mundo no qual se habita, e avançando para um aprimoramento técnico, estético e conceitual.

Somos seres que habitam mundos onde se vive junto. O segundo princípio, então, é o da comunidade: da organização em um grupo no qual, por não se estar pautado pela produção final, pode-se desfazer e se refazer, experimentando modos de existir junto, em coletividade, que possam fomentar a vontade de criação como vontade atualizada num fazer coletivo. E, por não se apressar pela demanda de um produto final, este fazer se debruça numa experimentação coletiva que possibilita um aprender colaborativo, onde cada artista pode apreender com os demais (no sentido mesmo de tomar para si) o que pode vir a somar no seu fazer criativo.

E, na medida em que se trata de um coletivo diverso, com artistas do circo, da dança, do teatro, da performance e das artes visuais, mas também da música, do vídeo e da produção técnica, a transversalidade é o terceiro e inerente princípio do NECITRA. Transversalidade que pressupõe um trânsito não-hierárquico do saber e do fazer, condição indispensável para a experimentação como composições que possam ser realizadas entre díspares, como arranjos heterogêneos.

Trata-se de convocar, via estes três princípios, uma postura ética de aceitação e promoção das diferenças de modos de fazer, logo de existir, e de seus efeitos no coletivo e para além dele. Significa estar aberto aos efeitos do dissonante sobre si próprio, e de pensar com aquilo que antes não era pensado: tal como a perspectivação de um fazer coreográfico sobre um ponto de vista teatral, ou de uma cena teatral do ponto de vista do desenho, de um malabarismo sobre a métrica musical, do circo pelo vídeo, do vídeo pela dança, da técnica pela poética, e vice-versa. Um espaço aberto ao diverso, divergente, múltiplo e imprevisto, ainda que modulados pela coordenação dos processos via planejamentos. Tais processos, em definições adotadas sobre processos horizontais, democráticos e provisórios, são assim revistos de tempos em tempos para que a existência deste Núcleo perpetue, ganhando assim novas vidas numa vida em comunidade. Uma comunidade que se dedica à experimentar-se, convocando e promovendo conexões transversais em composições heterogêneas, potencialmente imprevistas e improváveis. Um grupo onde o fazer artístico é compreendido como intrinsecamente elaborado sobre nossa constituição individual, ou seja, interrelacionada com as dimensões psicológica, social e ambiental: assim nos experimentamos, ao mesmo tempo individual e coletivamente, sobre transversalidades.

E, assim, nos manifestamos como NECITRA, um espaço virtual de encontros e apoios entre artistas e técnicos, de traçados que conectam indivíduos humanos com ideias, imagens, objetos, memórias, etc. Espaço como um campo de forças, um campo potencial, que se atualiza em dado lugar, num espaçotempo específico que condiciona as possibilidades destes fazeres experimentais, em pesquisas, criações, espetáculos, vídeos, textos, etc.