Coordenador ou diretor?

Quando em 2009 projetei os princípios do NECITRA, antes dos procedimentos para o seu funcionamento, a definição de dois conceitos cadeira-diretor-de-cinema-antoniazzi-14512-MLB2710787035_052012-Oforam muito importantes: a opção pela formação de um núcleo, ao invés de grupo, e com isso a opção por um coordenador, ao invés de um diretor.

Nestes seis anos, muitas vezes se referiram a mim como diretor do NECITRA, e muitos vezes fui questionado, inclusive pelos integrantes do núcleo, da diferença entre coordenador e diretor, sendo que para alguns são sinônimos. Em síntese, sou coordenador do NECITRA e diretor de alguns dos trabalhos, não de todos.

Pretendo aqui aprofundar alguns pontos que justificam essas opções que muito mais que algo gratuito ou somente estético, é uma afirmativa coerente com os princípios deste grupo, que é um núcleo. Parto da crença de que os conceitos definem uma dada realidade, sendo indispensável compreendê-los quando se quer entender um determinado contexto, e para construir relações consistentes e objetivas num trabalho interno de grupo. Mais um vez, reitero se tratar de um ponto de vista e de escolhas feitas (e seguidas desde então) dentro de um determinado contexto, dentro de um processo que se iniciou ainda em 2008, culminando com a criação do NECITRA em 2009.

Essa diferença entre núcleo e grupo vou desdobrar em outro momento. Mas é relevante afirmar que o NECITRA é um espaço com artistas trabalhando de forma simultânea em projetos individuais e coletivos, e com estruturas diferentes desde sua concepção, pessoas e técnicas envolvidas, até os procedimentos de trabalho assumidos. Ou seja, as obras resultantes destes processos são tão parecidas quanto pode ser o trabalho desenvolvido por um grupo de dança e um grupo de teatro, ou as semelhanças entre um espetáculo circense de rua e uma videodança.

No campo conceitual que consolidou a base da organização do NECITRA, o diretor é definido como alguém que dirige um trabalho, qualquer que seja: um espetáculo, um vídeo… ele é o principal responsável pela formato final da obra. Orienta para onde vai o grupo de trabalho: de onde partimos e para onde vamos. Um diretor concebe, para iniciar, e direciona, para finalizar. Com o olhar no horizonte, define o fim, e a partir disso o começo, as ferramentas e procedimentos de trabalho. Ou parte de uma concepção prévia, de um texto, de uma referência… O diretor está mais centrado na concepção, objetivos e metas e a partir de então define os procedimentos de trabalho- que podem ser os mesmos sempre, ou variar, dependendo da maneira que este diretor trabalha.

O coordenador está preocupado com os procedimentos para o funcionamento geral do grupo. Para que sejam criados e gerenciados os princípios que regem o funcionamento do coletivo e para acompanhar o seu desenvolvimento. Não se trata da coordenação dos processos artístico dos integrantes e sim da gestão geral do coletivo: dias de encontro, reuniões, apresentações, critérios de participação, entre outros. Mais do que apontar a direção, ele está ocupado com o andamento. Ou seja: vá para onde você deseja, mas evite ficar parado. Assim, um coordenador não define os objetivos dos trabalhos, mas objetiva que todos definam seus objetivos. O coordenador não participa, se não for convidado, da concepção dos trabalhos, mas concebe que os trabalho artístico precisam ser desejados, produzidos da vontade, que levam a estudos e experimentos, e que precisam de uma concepção, bem como métodos de trabalho e avaliação. Um coordenador tem uma função de mediação. Um coordenador tem também uma função pedagógica.

Novamente, estas são as escolhas conceituais que fiz no momento da criação do NECITRA, e que sigo na realização dos meus projetos. Todavia, os integrantes tem autonomia para optar por outros conceitos ao definir as funções assumidas nos projetos criados por si, para si e seus pares. Contudo, como coordenador do núcleo, no sentido de mediar as ações, proponho esses conceitos como consenso para a criação e organização de novos projetos, de modo a balizar as trocas de informações.

Para reforçar essa visão trago os significados constantes em dicionários:

Coordenador: “Pessoa que organiza e orienta um projeto ou atividade de grupo”*. O coordenador organiza os processos coletivos para o bom andamento do grupo. Os objetivos são definidos coletivamente, a direção é definida pelo pleno, o coordenador media as ações para que se alcancem esses objetivos.

Diretor: “Que dirige, regula ou determina”**. O diretor define os objetivos, define a direção e regula a ação de todos para que esses objetivos sejam alcançados. O diretor, por óbvio, é diretivo, o coordenador, neste contexto abordado, é democrático, colaborativo, estimula a cooperação.

Sendo mais analítico, e correndo o risco de ser superficial demais, aponto diferenças chave entre coordenador e diretor, na ordem citada: organiza X dirige – media X regula – orienta X determina.

Para ilustrar melhor, cito como exemplo o projeto Desdobramentos. Ele precisa de um coordenador, que organiza toda a produção do evento, funções necessárias para a sua realização, cuidados técnicos e com a divulgação, entre outros. Que cuida para que o projeto tenha continuidade, que estimula a adesão ao projeto, que projeta uma agenda anual. E por ter um resultado cênico, uma obra, ele precisa de uma direção. O Desdobramento tem uma direção geral do espetáculo, que não interfere nas cenas em si, mas que define a concepção do espetáculo (de cada edição) e dirige os artistas para que se adaptem naquela concepção, sem interferir no interior das obras individuais. Caso seja necessário modificar a obra para que seja apresentada naquela edição, o que será decidido pelo diretor geral, caberá ao diretor da obra decidir se essa alteração é possível e desejável, ou aguardar a próxima edição onde a obra possa ser contemplada. Eu assumo as duas funções no Desdobramentos, mas defendo que em projetos maiores futuros essas funções possam ser dividas para não sobrecarregar nenhum ponto, e com isso garantir uma bom desenvolvimento dos projetos.

Ainda, é importante salientar que essas definições não valem para todos os projetos. Caso se trate, por exemplo, da criação de uma coreografia, não creio que seja necessário um coordenador, mas apenas um diretor – que vai se utilizar de métodos mais diretivos ou mais colaborativos.

Portanto, o coordenador está mais centrado na organização e mediação, na manutenção da coesão no andamento das atividades do grupo. O diretor dirige uma obra, com concepção e objetivos específicos. Se o NECITRA fosse um grupo com um objetivo específico ou um caminho único a ser trilhado, focado numa determinada linguagem cênica e centrado num método de trabalho, se fosse um grupo de teatro, de circo ou uma companhia de dança no modo mais tradicional, digamos assim, ele teria um diretor e um resultado estético mais ou menos identificável. Não é o caso do NECITRA, e por isso ele é um núcleo, conceito pensado para dar conta deste contexto onde variam os objetivos das obras/projetos, suas opções estéticas, metas e modos. É um coletivo de artistas associados com intuito de fomentar esse espaço potente para a criação de suas obras, de forma colaborativa.

Podem afirmar, se assim desejarem, que um diretor tem as mesmas posturas que aqui defini como as de um coordenador. E o contrário. Outros farão outras escolhas. As conceituações tomam as formas e conteúdos definidos em cada contexto. E são importantes para o aprofundamento das ações e das relações. Mas é importante atentar para a origem destas palavras/conceitos, evitando desnecessárias relativizações, totalitarismos ou mergulhos niilista. Assim, rever os conceitos como partes isoladas, ou a partir de referências externas ao contexto em questão, descontextualizadas portanto, não é procedente, fragiliza o processo e dá inicio a uma marcha em círculos. Para além de boas ou más, as concepções são escolhas, e elas devem ser feitas e compreendidas em toda a sua extensão e complexidade, o que demanda tempo, paciência e humildade, para poder assim conformar um trabalho dinâmico e potente. E mesmo para que, após as devidas apropriações e usos (o que, reforço, demanda tempo, provavelmente anos) possam mesmo ser ajustadas, repensadas e alteradas.

O NECITRA, enquanto núcleo artístico, é um espaço com muitas entradas e diversas saídas, com caminhos construídos e refeitos a todo o momento, através do método escolhido por cada um, partindo de suas concepções, objetivos e metas. O NECITRA tem um coordenador geral, mas terá tantos diretores (de obras) e coordenadores (de projetos) quanto forem os desejos, vontades e capacidade de organização e engajamento de seus integrantes.

 

*http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/coordenador

**http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=diretor

Os movimentos e as emoções

Os movimentos e as emoções

Mapa das emoções relaciona áreas do corpo com cada emoção

Pesquisadores finlandeses criaram o primeiro mapa que aponta em que lugar do corpo as emoções humanas se manifestam.

Cada emoção parece despertar reações em diferentes áreas do corpo, independentemente do fato de as pessoas terem culturas diferentes.

“As emoções não ajustam apenas a nossa saúde mental, mas também nossos estados corporais. Desta forma, nos preparam para reagir rapidamente frente aos perigos, mas também diante de qualquer oportunidade que o ambiente nos ofereça, como uma interação social prazerosa”, disse Lauri Nummenmaa, da Universidade de Aalto.

Colorindo as emoções

Para o estudo, os cientistas realizaram cinco experimentos com 701 pessoas.

Os voluntários deveriam localizar em que lugar sentiam o efeito de uma série de emoções básicas como raiva, medo, nojo, felicidade, tristeza ou surpresa, e outras mais complexas como ansiedade, amor, depressão, desprezo, orgulho, vergonha e inveja.

Os participantes tinham que colorir em uma figura humana as zonas que se ativavam mais ou menos enquanto ouviam as palavras que designam cada uma destas emoções.

O vermelho era usado para marcar as áreas de maior atividade e o azul, as com menos sensações.

Os cientistas então observaram uma grande coincidência, acima de 70%, das áreas coloridas.

Para garantir que estes mapas não dependiam da cultura ou idioma dos voluntários, os cientistas repetiram os exercícios em três grupos com nacionalidade diferentes: finlandeses, suecos e taiwaneses.

Mesmo assim as coincidências foram observadas, levando à conclusão de que as respostas físicas às emoções podem ser universais.

Amor e alegria

Segundo o mapa das emoções, as duas emoções que causam uma reação corporal mais intensa e em todo o corpo são o amor e a alegria.

Também é possível ver que, no geral, todas as emoções básicas ativam sensações na parte superior do corpo, onde estão os órgãos vitais e, principalmente, na cabeça.

“Observar a topografia das sensações corporais disparadas pelas emoções permite criar uma ferramenta única para a investigação das emoções e pode até oferecer indicadores biológicos de transtornos emocionais,” afirmaram os cientistas em seu estudo.

Oficina na Usina do Gasômetro

Tenho ministrado oficinas/cursos voltados para a arte circense desde que resido em Porto Alegre (2007) e antes, em Santa Cruz do Sul. Ando pensando nesta frase, que corresponde à um estado: manter a constância na inconstância. Frase/ação que vai muito além desse exemplo, mas que ilustra o meu percurso como professor/oficineiro/educador nesta capital. Realizei cursos junto ao Circo Teatro Girassol, Casa de Cultura Mario Quintana, Centro de Desenvolvimento da Expressão, Centro MEME, novamente Casa de Cultura e agora no Centro Cultural Usina do Gasômetro.

A oficina também muda com as mudanças pessoais, que mudam com as outras pessoas que me acompanham, que chegam e que vão, com os acontecimentos, com esses cruzamentos da vida. Varia o foco, varia o tempo, varia o “clima”, o público. A oficina muda, junto ao fluxo da vida. Permanece o trabalho com o corpo, a exploração das técnicas circenses, as apropriações de outros campos e, particularmente nos últimos meses, o duplo desejo de considerar o todo, misturando as referências e os campos, desconsiderar as bordas, os limites técnicos e conceituais e, dividir as partes, analisar as formas, os métodos, suas origens.

Quem vai a esta oficina, particularmente, aprenderá a subir no tecido e nele se suspender, em suma. Mas os caminhos para tanto, os exercícios, os procedimentos pedagógicos, ao meu ver, muitas vezes, carregam em si potencias próprias, sutilezas que tiram o corpo de um lugar comum, que fazem o corpo pensar.  A tempos renunciei de reduzir as técnicas circenses como um sequência de truques virtuosos, ou como preparação corporal. E isso se expressa tanto nas minhas pesquisas e criações, como nas oficinas/cursos. A priori, virtuosismo e desenvolvimento do corpo são parte da arte circense e suas técnicas. Portanto, fazem parte de mim e da minha prática. Preciso então exercitar esta prática específica, de desterritorialização, e de buscar nessas terras o que para muitos outros são restos, mas que procuro com muito pesar. Aliás, sempre tenho a impressão de que algo me escapa. Talvez tenha que parar de tentar prender, mas não de apreender (e onde está a diferença?!) pois assim nada escapará. Mas já estou mudando de assunto.

Amanhã tem mais um dia de oficina. Mais um dia de preparação corporal, de ensino de técnicas e de exercitar o corpo no desconforto confortável de um lugar incomum: estar suspenso, pendurado: ação desconfortável para um corpo acostumado com a terra, com a segurança, confortável para um corpo que precisa do ar, que carece de leveza. Mas já estou mudando de assunto. Quinta e sábado também tem.

A diferença entre ser sério e ter seriedade

Existe muita diferença entre ser sério e ter seriedade.

Logo mais, no início da semana, estaremos postando na rede um novo vídeo. Já existe uma versão no youtube, mas somente pode ser acessada pelos integrantes da Canto, como forma de opinarem sobre a edição final, feita por mim.

Buenas, entramos num diálogo sobre deixar ou não algumas cenas, onde o elenco aparece brincando, numa postura mais descontraída. Como por exemplo, no momento em que o Juliano imita a Kalisy, que por estar viajando no feriado, não pode participar do vídeo.

O motivo desse cuidado, seria mostrar uma postura mais séria para quem assistir ao vídeo – ou até mesmo fazer dele algo mais sóbrio e explicativo. Porque? Por nos inserirmos num mercado cultural, por querer “vender” o trabalho, por querer ter público e defender que sim, somos artistas, circenses, bailarinos e atores mas, somos sérios. E esse “mas” denuncia o auto-preconceito – mas já estou ampliando o debate, trazendo para um senso comum, que não foi apontado em nossa discussão inicial. Mesmo assim, corremos o risco de, mesmo acreditando no nosso trabalho, querer dar uma pitada de seriedade. Opa: seriedade?

Fizemos um vídeo de boa qualidade, com técnicas de cena apuradas, fruto de muito treino, temos logomarcas – tanto dos grupos, quanto dos projetos – temos concepção, produção, agenda…. O que mais precisamos para ser sérios? Ah sim, brincar menos, fazer menos trocadilhos, ou paródias, ou substituir a Kalisy que esta viajando – quando se fez isso com carinho, uma forma feliz de trazer ela para o vídeo.

Enfim, temos sim seriedade, muita. Nos dedicamos, todos, e fizemos arte de uma forma comprometida. E fizemos com alegria, sorrindo e brincando – mesmo que por vezes não seja tudo tão colorido…

Portanto, não somos sérios. Mas as vezes, inevitavelmente, temos que ser…

E sempre que dá, quase sempre, seguimos alegres e brincantes, com toda a seriedade que ser contente precisa e merece.

A necessidade de transformar-se em um artista-etc

Artigo de minha autoria publicado no site Nonada-Jornalismo travessia:

A necessidade de transformar-se em um artista-etc

A necessidade de transformar-se em um artista-etc

Viver de arte é difícil, ao menos financeiramente falando. É o que muito se ouve neste meio. Não discordo, mas acredito que pode ser diferente. Tudo depende do que se faz, do modo como se faz, da organização e da qualidade do trabalho. Além de se ter o espaço necessário para apresentar sua obra e pessoas interessadas em vê-la. Mas como operar para chegar a esta condição?

Quando o Nonada me convidou para compor um dos textos da editoria de Economia da Cultura, me pus a pensar em por onde começá-lo. Do meu ponto de vista, o de artista, a sustentabilidade é uma cara questão. Ainda estamos engatinhando neste sentido. E digo estamos, pois a maioria dos grupos tem pouco tempo de existência e mesmo os mais antigos têm dificuldade de se manter, com raras exceções. Sabemos fazer arte, mas muitas vezes não conseguimos colocá-la dentro da sociedade atual. Existe um mercado de cultura, de arte, e mesmo não sendo a favor do sistema, precisamos fazer nosso trabalho circular. Além disso, é somente aceitando e adentrando este sistema que se pode, de modo transgressor, modificá-lo.

Nesta edição, o assunto é a ação do Estado na sustentabilidade dos grupos. A ação mais efetiva com relação aos grupos e aos artistas independentes, são os prêmios lançados através dos editais. Considero uma ação um tanto paliativa, mas efetiva e de grande valia. Principalmente se a verba for usada pelo grupo como um investimento para multiplicar este recurso futuramente. Tanto é frágil este formato que já está em funcionamento o Sistema Nacional da Cultura, com modificações na forma do Estado prover suas ações.

Uma delas é o fundo setorial da cultura, que é dividido por áreas. Aí entra uma das modificações mais importantes: ao invés de serem prêmios menores para criação de uma obra, por exemplo, eles são direcionados a manutenção das atividades de um núcleo, ou de um espaço, por doze meses. Estamos na espera da abertura dos editais para dividir as fatias deste bolo: são verbas para a cultura inéditas neste país. Isso cria uma expectativa tão grande quanto pode ser o desânimo numa posterior não aprovação do projeto enviado.

Os editais são formas importantes de manutenção do fazer artístico e é indispensável se preparar para escrever um bom projeto, além de ter idéias e atividades interessantes para tanto. Dentro deste contexto muitas questões são relevantes, das quais pretendo pegar dois pontos: o acesso dos indivíduos aos editais e a importância desta verba na sustentabilidade dos grupos e artistas em seu fazer artístico. Para tanto, usarei minha própria experiência, como artista, diretor, produtor e praticamente, ao menos em alguns momentos, um cansado burocrata.

Sou coordenador e diretor do Núcleo de Estudos e Experimentações com Circo e Transversalidades, o NECITRA. A história desse grupo começou em 2008, quando escrevi um projeto, como artista independente, para o edital de Bolsas para Criação e/ou Aperfeiçoamento de Números Circenses. Quando fiquei sabendo do referido eu estava há doze meses em Porto Alegre. Antes, em Santa Cruz do Sul, onde morava, não sabia da existência destas ações do Estado na promoção da cultura. O projeto foi contemplado e a partir daí busquei profissionais para a sua realização. Foi desta forma que cheguei até o Centro MEME e ao Paulo Guimarães, diretor do mesmo, que me orientou nas pesquisas. E foi a partir desta pesquisa, e do convite do centro, que criei o núcleo.

Poucos meses após enviar o relatório final deste projeto foi aberto o edital do Prêmio Carequinha de Estímulo ao Circo 2009. O projeto que desta vez escrevi, neste momento como NECITRA, tinha dois objetivos: criar um espetáculo, dando continuidade à pesquisa iniciada com a bolsa e criar uma rede circense do Rio Grande do Sul. O primeiro objetivo vinha ao encontro das minhas demandas enquanto artista, de seguir com as pesquisas e criar uma obra, tendo recursos para tanto. O segundo foi um desdobramento do primeiro: era o artista interiorano buscando uma maneira de descentralizar estas informações, de poder dividir com os pares a possibilidade de acessar essa verba, que é pública.

Novamente o projeto foi contemplado. Iniciei então as pesquisas do espetáculo ao mesmo tempo em que pensava na criação da rede, num formato onde ela efetivamente desse conta de seu objetivo. Logo conclui que a verba era pequena demais para as minhas pretensões e tratei de buscar uma solução. Tinha a meu favor um projeto em andamento, que contava com um orçamento que desejava criar materiais gráficos e um site, além da circulação do espetáculo, oficinas e das parcerias através da rede. Com esses recursos previstos e o “alvará” do Ministério da Cultura e da FUNARTE dando crédito a ele, criei um projeto de captação de parcerias na forma de apoio cultural. Através deste, tive um ganho de mais de 50% do valor do prêmio, representado na forma de serviços ou cotas em dinheiro. Além disso, fechei uma parceria com o SESC-RS para efetivar a realização da circulação do espetáculo e das oficinas como uma das ações da rede pelo interior, assim como previsto.

Então, a partir das verbas dos prêmios foi possível realizar uma série de ações que concretizaram um núcleo que hoje dispõe de um espaço junto ao MEME – Santo de Casa Estação Cultural com uma boa estrutura para realização de suas atividades artísticas e pedagógicas. O que ressalto é a infraestrutura de produção e gerenciamento que foi criada com estes recursos (dos prêmios, das parcerias e também de um investimento pessoal): site, assessoria de imprensa, designer, material gráfico, veículo próprio e as parcerias que dão base para os projetos atuais bem como para os futuros.

Se a bolsa e o prêmio da FUNARTE foram o ponto de partida, o ponta pé inicial para a criação do NECITRA, assim como foi para outros grupos em atividade na cidade de Porto Alegre e no Estado, não foi o único meio de execução de seus projetos. Com isso, levanto a questão da importância da articulação dos artistas, que estes se assumam como produtores, empreendedores, buscando outras parcerias com o sistema público e privado. Minha experiência aponta para o fato de que muitos grupos se mantêm através dos prêmios, ou esperam por estes para renovar os trabalhos, equipamentos, etc. No entanto, os prêmios não podem ser o único suporte financeiro dos grupos. Não é muito sensato esperar o peixe, e sim aprender a pescar. E um bom pescador sabe onde o mar está propício para a pesca.

Outra questão que não pode passar despercebida é que muito artistas e grupos não ficam sabendo dos editais. Outros até tomam conhecimento e acabam não sabendo como redigir seus projetos, ou mesmo acreditam que não terão chances de serem aprovados e nem enviam. Por isso a criação da rede: ela tem o objetivo de ser um meio para que os grupos possam trabalhar de forma cooperativa, através de ferramentas como grupo de emails e o site para repassar informações. É uma forma de promover a arte circense, de potencializar os artistas através da troca, seja ela num âmbito técnico, estético, ou político. Estamos fazendo um mapeamento dos grupos e tentando aproximá-los. Já que a rede pretende também um intercâmbio entre os artistas, fazer circular não só o conhecimento, mas também os espetáculos de cada grupo.

Enquanto se pensa muito no financiamento público para arte, às vezes se esquece de outro importante e indispensável “investidor” deste fazer artístico: o respeitável público! Faço então as considerações finais: é importante buscar as verbas públicas, mas também parcerias privadas, bem como trocar conhecimentos e abrir novos espaços e mercados de trabalho através das redes, mas tudo isso precisa vir com o objetivo de qualificar as obras e criar público. Esse, ao meu ver, é um dos perigos dos editais: com o trabalho previamente financiado, alguns não se preocupam com o público, em realizar uma obra que troque algo com estes, ou antes de tentar entender quem é esse público. Na maioria dos casos, os próprios artistas. Mas aí fica muito pano para futuras mangas.

Muita dedicação e investimento são necessários para se conquistar a sustentabilidade, para poder se viver de arte. As ações do Estado atualmente têm contribuído para isso, mais do que nos últimos anos. Pelo menos até agora, já que com a troca de governo nada é certo. De qualquer forma, temos ferramentas, espaços e público em potencial. O essencial é estudar, planejar, investir, e atuar considerando a condição da sociedade, onde já não basta ser somente artista, aquele que cria isolado do “mundo”. A contemporaneidade pede por artistas-produtores, artistas-empreendedores, artistas-diretores, artistas-multimídia, artistas-motoristas e etc: um artista-etc.

Diego Esteves

Datado III

Fechando a reprodução de textos antigos. E espero que seja de fato uma trilogia, para que os próximos surjam das pesquisas em andamento. E que estas passem a andar mais rápido.
Este foi publicado em 3 de fevereiro de 2010, no blog do MEME. Mesmo postado aqui na sessão estudo, foi quase uma experimentação. Um texto meio sem começo, meio sem fim. Como são todos os bons textos (ao menos os bons de se escrever, nem sem pre de se ler). Aí vai.
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Diego Esteves
Janeiro de 2010.

Quando surgiu o convite para escrever para o blog do MEME, fiquei pensando no tema sobre o qual discorrer. Nesse momento o tema já foi escolhido e, ironicamente, é com ele que me encontro agora: o vazio.
Escrever sobre o vazio, aqui, é uma redundância: escrevo pensando esta palavra ao mesmo tempo em que estou sobre este vazio, na medida em que as análises estão por serem feitas: a folha está em branco. E não só isso, pois fosse só o fato de ela estar em branco, bastaria alguns toques de dedos para preenchê-la. Mas não é disso que se trata. Escolhi escrever sobre algo que me punge, que me toca e atravessa, me coloca a pensar e antes, sentir. Não é algo que conheço, tenha estudado com afinco, ou tenha um concreto conhecimento de causa. Mas, diz Deleuze, filósofo francês caro para esta análise, que a boa inteligência vem sempre depois. Assim espero.
Dou início: a criação não se dá sem a existência de um vazio. Mas o que é este vazio? Pois sem esta resposta a afirmação ficaria um tanto confusa: como pode existir um vazio, quando um vazio seria um nada, e um nada não pode ocupar espaço, ou pode? Há também, nesta linha, uma afirmação que diz que nada pode surgir do nada. Então, de que vazio se trata? Neste caso, uma questão conceitual, ou poderia ser metafórica: um conceito que responde a um problema, o qual tento elaborar, ou uma metáfora que exprime uma sensação: a qual sinto enquanto artista em processo de criação.
Nada muito perto de certezas. O mais próximo disso é crer que sem este vazio não é possível criar uma obra de arte que seja intempestiva. Neste sentido, estou com o texto de Sueli Rolnyk: Se definirmos o intempestivo exatamente como a emergência de uma diferença desestabilizadora das formas vigentes, a qual nos separa do que somos e nos coloca uma exigência de criação, uma obra de arte intempestiva é aquela que se faz como resposta a uma exigência deste tipo; é só quando isso acontece, a meu ver, que se pode falar em arte.
Se assumimos então esta necessidade, nos deparamos com outro problema: da dificuldade de se colocar nesta posição inconsistente, indecisa. Poucos se permitem não saber, não ser, não estar. Tendemos a nos agarrar às formas, a um Eu com nome, sobrenome, RG e verdades. Querendo ou não, estamos num lugar, e o vazio, neste caso, é aquele momento de angústia, um sentimento ambíguo: a apreensão de não saber para onde ir e a expressão que pode ir para qualquer lugar: quando nada é, tudo pode ser. Interessante que a palavra apreensão no dicionário tem o duplo sentido de preocupação por incerteza do futuro e ação ou efeito de aprender.
Digo isso, pois penso que uma das formas de estar na vida é agir como se os problemas não existissem, num fruir descomprometido, usufruindo de uma pseudo-felicidade (ou outra forma de felicidade?). Era uma das críticas de Nietzsche, segundo Jean Granier: Adivinha-se a receita dessa felicidade: a eliminação engenhosamente programada de tudo o que, na realidade, é fonte de conflitos, de lutas, de tensão e, portanto, de superação. Trata-se de reduzir a existência humana a uma sonolência prazerosa e ininterrupta, a uma irresponsabilidade contente. Reconhece-se aí o ideal da “sociedade de consumo” moderna, versão técnica e publicitária do niilismo passivo.
Por outro lado (que em nada nega o anterior) podemos pensar que as formas se agarram ao nosso ser. Basta analisar como estamos impregnados de posturas, de gestos, de dizeres, de opiniões. Não seria de todo errado afirmar que, só somos, à medida em que temos uma forma. Num extremo: somos esta forma. Logo, não poderíamos ser um nada. Podemos, contudo, ser o processo, não o fim. Estarmos mais atentos aos acontecimentos e mais, provocar para que algo nos ocorra e ocorra com o mundo: se mantém então a forma, mas pequenas sutilezas fazem com que ela mude, pouco a pouco. Não que essas mudanças não sejam inerentes a todos, porém, ser ativo, atuante, pensante, fazedor, criador, questionador, é diferente. Interessante como muitas dessas palavras terminam com dor…
Vivemos numa estrutura social, há toda uma maquinaria da qual fazemos parte à medida em que temos um lugar, uma função. Mesmo assim, por mais que a tendência seja a da reprodução, sempre a algo que escapa, sempre existe uma linha de fuga e é sobre estas que precisa recair nossa atenção. Parece-me que poucas coisas podem ser tão difíceis quanto isso. Assumir esta condição de procura, de sensibilidade apurada, de pensar constante, é causar um eterno problema enquanto durar a vida. Aliás, pensar realmente, e não somente repetir, pressupõe, ao meu ver, uma boa dose de sensibilidade: uma é inerente a outra. Mas arrisco dizer que só assim estaremos com a vida e não na vida. Não sem dor: negar esta, como a derrota e tudo que rotulamos como o mal, é nos tirar a chance da felicidade, da superação, do ir além. Como saber a felicidade sem saber a tristeza?
Encontrar este estado de inconstância, de não-saber, que aqui estou chamando de vazio, não se dá sem um esforço. E esse esforço não é eficaz sem um método. E é aí que está, ao meu ver, um dos méritos dos laboratórios do MEME: promover, por diversos meios, este vazio. Penso que é na desconstrução do ser, que é buscando uma indefinição, um corpo informe, que surge a criação. Desconstruir para reconstruir. Do contrário, ficaríamos com o mesmo e com as formas dadas. Contudo, é necessário jogar com as formas, não negá-las.
Um adendo: não é possível ser esse vazio. Penso que esta condição sensível não é um lugar para ser alcançado, é um caminho. E, talvez, na maior parte do tempo, viveremos os automatismos e distrações cotidianas, já que a tendência é a da reprodução. No entanto, em laboratório, em criação, esta condição é indispensável e, mesmo assim, nem sempre alcançada. Mas exercitá-la, em arte, pode significar a possibilidade de trazê-la para a vida como um todo e, fazendo assim, da vida uma obra de arte.
Encaminho o texto para o fim com o pouco fôlego que me resta. Penso ser provável que ele não se faça entender o suficiente. Talvez bem menos do que isso. Seria um disparate que fosse o contrário. O motivo, já dito de ante-mão, é que não sei sobre o que escrevo: tenho alguns apontamentos, mas escrevo com essa sensação de vazio (que neste caso é muito pertinente). Só me potencializa escrever neste limiar. O mesmo vazio que experimento dia a dia, enquanto artista: função que, reafirmo, não pode se dar, ao meu ver, sem se permitir e se provocar esses vazios. Sem estar neste limiar. Ao menos quando se pensa numa obra de arte intempestiva. Ou quando se pensa, como Roland Barthes, ao escrever sobre Brecht, uma arte crítica:

Tudo o que lemos e ouvimos recobre-nos como uma toalha, rodeia-nos e envolve-nos como um meio: é a logosfera. Essa logosfera nos é dada por nossa época, nossa classe, nosso ofício: é um “dado” de nosso sujeito. (…) A arte crítica é aquela que abre uma crise: que rasga, que faz rachaduras na cobertura, fissura a crosta das linguagens, desliga e dilui o ligamento da logosfera; é uma arte épica: que torna descontínuos os tecidos das palavras, afasta a representação sem anulá-la.

1 http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/ninguem.pdf
2 Nietzsche. Jean Granier. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.
3 Escritos sobre teatro. Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2007

Datado II

E seguindo com a tendência do resgate histórico, vai uma espécie de continuação do texto anterior, publicado no mesmo blog. Nas mesmas condições, que é de um texto que seria bem diferente se escrito hoje, mas faz parte de um processo: enquanto circense, enquanto “escritor”, enquanto pessoa. Por isso cá está.

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Continuando: circo, filosofia, vida, ética…..

Ainda pensando sobre a arte circense e suas possibilidades latentes, lembrei de uma citação. Esta está num texto que eu já havia lido há mais de um ano, mas tive contato com ela novamente, em outro contexto, que me proporcionou outros pensares. Pois dá primeira vez que a li, estava só e descompromissado, tinha o interesse no texto, as conexões me vinham, digamos, ao natural e aos poucos. Neste segundo momento, no mês de fevereiro, eu estava num workshop com o Grupo Lume, em Barão Geraldo, Campinas – SP. Workshop teórico, ministrado por Renato Ferracini, contextualizando e conceitualizando o corpo e o corpo em arte. Trata-se de uma citação de Deleuze e Guattari, do Mil Platôs Vol. 3, no texto Como criar para si um Corpo sem Orgãos:
Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.
Lembrei desta citação, pois penso que é um bom exercício e a melhor forma de buscar alternativas para a arte circense (alternativas que já vem sendo buscadas por grupos mundo afora, faço aqui um exercício mais conceitual, pois se acredito nesta busca de novas formas, também acredito que em nome do novo e da liberdade, pode se produzir, num âmbito conceitual, uma estética vazia). Existem neste texto muitos conceitos importantes na filosofia de Deleuze e Guattari que não me seria possível explicar com a devida consistência que penso ser indispensável. A idéia é usá-la como dispositivo de um planejamento para uma execução mais ou menos prática na busca de uma “nova” arte circense. Considerando que o que nos dizem esses teóricos, a mim, é uma forma de atitude ante a vida, uma ética.
A partir daí, a questão então é: instalar-se sobre o que vivemos como circo hoje. Buscar nele, e em nossos corpos que o vive em ato, espaços, rupturas, linhas de fuga. Se assentar numa pequena parte e nela buscar possibilidades de ações corporais, outros movimentos, outros agenciamentos com os aparelhos circenses, ou buscar um objeto não circense, cotidiano, e aplicar nele e com ele a “lógica circense”.
Uma tentativa mais específica de aplicabilidade: malabarismo: com bolas: usar o corpo, além das mãos: pés, cabeça, costas, braços e coxas. Além do bípede: outras relações com o espaço: sentado, deitado, giros. Ações mecânicas: variações de lançamento e recepção, equilíbrios estáticos e dinâmicos. Relação com o som: silêncio, música, o som da bola em contato com o corpo, ou com o chão, a voz. Mistura de técnicas: movimentos acrobáticos, gestos, ou referências de dança. A variação do próprio equipamento: não mais bolas de malabarismo: folhas, frutas, bolhas, cuspes, tubos, lenços, talheres. E demais buscas, demais linhas de fuga, desterritorializações.
Do malabarismo a acrobacia, passando pelos aéreos, equilíbrios. Agenciando técnicas. Misturando as referências circenses com a memória corporal: vícios de comportamentos, brincadeiras lembradas, outras técnicas estudadas. O corpo só, com o objeto, com os outros corpos. O agenciamento com outras técnicas corporais. A pesquisa, o exercício, o experimento. Desfazer e refazer.
Entre a pesquisa de movimentos aberta e uma pré-conceituada: o corpo com um peso outro, o objeto, uma dada importância, outra função, outro simbolismo.
Sem pressa, com paciência, com curiosidade. A atenção no processo, o interesse por ele. O essencial está no processo, no meio. E no momento em que se quiser ou precisar (já que vivemos num mundo, com demandas práticas, cênicas e financeiras) retirar desta pesquisa toda, destes dados, o interessante, o querido, e montar um número, ou um espetáculo. Desacelerar e emoldurar. Então passa a ser este próprio espetáculo ou número uma espécie de estrato, podendo nele mesmo se buscar linhas de fuga, para readaptá-lo ao tempo, as necessidades. Sem desconsiderar que cada execução, atuação, é uma, única.
Jaz aí uma postura com relação ao circo, com relação aos relacionamentos, com relação à vida. Ao menos uma opção de. Menos simples do que a repetição dos vícios que adquirimos ao longo do viver. Ou os vícios que adquirimos da história acumulada à nossa arte.

Datado I

A primeira postagem no blog será anterior a ela e vinda de outro blog, de uma postagem datada de 10 de março de 2009. Coisas que circundam é o nome de um blog que alimentei por um tempo, e agora se encontra um tanto parado. O motivo principal é o mesmo que faz colar textos antigos ao invés de inciar novos: muito tempo dedicado a produção, coordenação, e pouco aos estudos. Coisa que estou dando conta de resolver.
Mesmo assim, rever escritos de outra época é, no mínimo, curioso. Um pouco do texto me agrada, um tanto já discordo, coisas que o tempo realiza conosco. Mesmo assim, optei por deixá-lo na íntegra: se assim foi, assim será, não me darei o luxo de me “corrigir”. Mas provavelmente retome a temática em novas postagens, pois estão em movimentos nas produções em estado de espera, como um artigo que espero publicar ainda este ano. Abaixo o dito cujo.

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Circo crítico?
Valorizar o trabalho do artista enquanto processo intelectual e não enquanto produtor de objetos para a contemplação e deleite de alguns.1

Pensei, a partir desta frase, publicada em 1974, num artigo de autoria de Ronaldo Brito, crítico de arte, na questão dos artistas e da arte circense neste contexto. Neste artigo, Brito discute acerca da arte conceitual: …uma tendência ampla e internacional que começou mais ou menos com a década de 70 – representa sem dúvida um movimento importante: pela primeira vez um movimento se propôs discutir não apenas o objeto da arte em si mas a própria função da arte e do artista na sociedade.

Não posso fazer da minha análise um questionamento que abrange toda a arte circense, mas sim dentro dos espaços de onde surge a minha experiência e das pesquisas que tenho feito a cerca desta arte, onde me incluo. Acontece que daí já surge um problema, que se soma aos outros, e me fazem questionar a arte circense enquanto processo intelectual: pouco se encontra de bibliografia e não há muita discussão neste aspecto na internet (faço esta afirmação com receio, pois não tenho pesquisado tanto quanto gostaria, mas é fato que se tratando de artes cênicas, a dança e o teatro tem publicações bem mais fáceis de se encontrar).

Acredito que está condição atual se torna mais clara à medida que se estuda a história do circo, das famílias circenses, de como se formou este grande espetáculo. E não há aqui em minha problematização uma questão de hierarquia, não se trata de ter que se ser intelectual para ter mais valor. Tem grandes méritos o circo tradicional, e um deles é o alcance que teve, e ainda tem, em termos de democratização e contato com o público. Coisa que não se pode afirmar da arte conceitual.

Contudo, desejo restringir está discussão no seguinte emolduramento: o que faz desta arte os que se dizem do Circo Contemporâneo? E não me aventuro agora na questão de conceituar e discutir o que se trata esse tal circo, mas me basta aqui sugerir que são artistas que surgem na nossa época e que conheceram o circo das mais diversas formas, que não a partir de sua família, sob a lona.

Circundando em torno da questão do circo contemporâneo, questiono as possibilidades deste fazer artístico circense que não se faça apenas no fazer, mas que se ponha a pensar. Pois, a medida que somos de outro contexto histórico e social, podemos (prendi meu ímpeto de escrever “devemos”) nos apropriar deste e pensar a arte circense não apenas como entretenimento, mas também como uma arte crítica.

E para delinear melhor a questão, coloco aqui a minha noção de arte crítica, me dita por Barthes: a arte crítica é aquela que abre uma crise: que rasga, que faz rachaduras na cobertura, fissura a crosta das linguagens, desliga e dilui o ligamento da logosfera; é uma arte épica: que torna descontínuos os tecidos de palavras, afasta a representação sem anulá-la.2

Talvez a principal dificuldade de alcançar esta proposta se dê no fato dos circenses estarem um tanto presos à virtuosidade. Se gasta toda a energia, ou boa parte dela, na busca do mais difícil, do mais impressionante: um mortal a mais, uma bola a mais, uma pirueta a mais. Quase sempre o mais. Quando as vezes pode ser interessante o menos (relendo o texto lembrei dos palhaços, que certamente constituem uma questão a parte, não se incluindo aqui). Não que isso não ponha o outro (espectador, ou mesmo um colega) em crise, mas ela vai acontecer se o outro perceber o quanto seu corpo poderia fazer, se outro corpo faz, mas não o faz porque não treinou, não seguiu este caminho, ou tem outra profissão, esta fora do peso, etc. Provavelmente uma pequena crise.

Acontece que temos nas mãos, ou mais precisamente em nossos corpos, muitas críticas em potencial. Pois, a medida em que vivemos numa maquinaria social onde apreendemos e somos apreendidos, tomamos formas que nos fazem ser quem somos. Temos, no entanto uma potência que não circula, ou que as poucos se diminui, num corpo que se desfaz na lógica do consumo, do utilitarismo, numa economia dos corpos: num menor gesto, uma maior produção (Foucault, se não me falha a memória). Sendo que assim, quem mais sofre é o corpo, que é este sujeito, ou está individualidade, eu e você. E quem melhor que os circenses para levar o corpo para outras possibilidades? Mas isso é texto para outros textos.

Penso que o mais justo é se pensar em um circo contemporâneo, com iniciais minúsculas, porque ainda vejo ele, salvo algumas exceções, como um circo que é do nosso tempo, mas não difere muito do circo tradicional no seu fazer a ponto de necessitar de um novo nome. Pois mesmo que se apresente em outros espaços, com outras propostas no figurinos e mesmo no dito circo-teatro, o que prevalece são as mostras de números nos passos da virtuosidade: enquanto produtor de objetos para a contemplação e deleite de alguns.

E se a arte circense se apropriar desta possibilidade crítica e conceitual, não como parte casual do processo de criação, mas sim com pré-texto, como inicio do processo? Não que tenha que se perder o que se tem, ou não se possa trabalhar com uma proposta, diria (com receio novamente), mais tradicional. Não estou propondo a troca de uma por outra, mas a criação de outros territórios: a multiplicidade de territórios. Fugir da simples repetição.
Porém, essa outra vertente pode ser um pouco mais trabalhosa, e é necessário estar um pouco mais aberto. Assim como é necessário criar um espaço de pesquisa, de estudo, com seus devidos tempos. Sob o risco de se fazer o tradicional, com um nome novo.

1 Ronaldo Brito. Experiência Crítica. Editora Cosacnaify.
2 Roland Barthes. Escritos sobre teatro. Editora Martins Fontes:São Paulo, 2007.